em um domingo pré feriado, decidi sair da minha casa depois de dois dias sem pisar os pés fora dela. não por tristeza, não por um espécie de apego a melancolia: era só um grande cansaço acumulado que clamava por calmaria. saí no domingo para ir à farmácia comprar um antibiótico com muitos dias de atraso, sem saber se ainda havia tempo para matar aquela bactéria que se manifestava silenciosa, mas sagaz. saí de casa e o porteiro me entregou o livro que eu havia comprado; é sempre uma alegria receber um livro. guardei na sacola ao lado da calça que ganhei alguns dias atrás e que decidi que trocaria de tamanho logo após a ida à farmácia.
cheguei na loja, ela estava fechada.
fiquei desolada: como planejei sair de casa justo no dia em que a loja estaria fechada? eu não tinha como prever, afinal, o feriado não era no domingo, era só no dia seguinte. pensei que foi melhor assim, não era só eu que tinha muito cansaço. todos merecem descansar. me encostei na primeira cadeira que vi, abri a sacola com a calça ainda grande e peguei o livro, que eu havia jurado poucas horas atrás só começar a ler quando terminasse o outro. mas o outro tem 1000 páginas, vai ver esse você termina rapidinho, me convenci.
uma lágrima caiu quando cheguei na terceira página.
na primeira: a confusão. na segunda: o choro reprimido. na terceira: desabei.
a primeira frase que grifei: é um tempo que não serve pra nada. nesse livro, mariana salomão carrara conta a história de ana, que ao se aproximar do prédio onde vive com andré, se depara com o corpo do seu marido despedaçado no chão, porque justo na hora em que ela ligou e pediu que chegasse correndo na loja há poucos metros do apartamento onde ela estava aguardando para que ele a ajudasse a carregar o enorme quadro que decoraria a sala deles, o vizinho do apartamento de cima se jogou pela janela e caiu em cima dele, de andré, do marido, do morto. de um instante a outro: dois mortos, duas viúvas. li tudo isso sem nenhuma pausa, o tempo legítimo da cadência das lágrimas que não queriam mais ficar presas em lugar nenhum, das lágrimas que pareciam querer desesperadamente sair. é um tempo que não serve pra nada, conclui ana quando se vê voltando no tempo, repassando tudo o que poderia fazer o que poderia ter feito o que deveria ter feito o que era para ser feito o imperativo ressonando: fazer, fazer, fazer e nada, nada adiantaria voltar para um tempo que já se foi.
se andré não tivesse morrido no sábado em que miguel se jogou janela afora, eu diria que ele teria morrido num domingo, num domingo semelhante ao que eu decidi pisar os pés fora de casa e receber o livro que já nem lembrava que chegaria na minha vida, que nem sabia que viria naquele dia, que decidi guardar na sacola da calça folgada que saiu da minha casa e voltou ainda maior, guardando em si todo o espaço das dores e dos lutos que carrego, que escuto na clínica e que presencio no meu trabalho na rua, onde vida e morte caminham mais próximos do que o instante em que miguel se joga da janela do seu apartamento sem calcular que andré estaria passando justo naquele infeliz momento.
narrar o luto pode começar muitas vezes com uma página em branco. pode começar também com a tentativa de preencher todos os espaços de uma página vazia com cores e o nome de quem se foi. pode-se olhar para o céu e procurar pela estrela que brilha mais forte. as narrativas do luto, o processo orquídeo do luto: ana diz que andré não gostava de orquídeas porque as flores logo morriam e restava só aquele graveto, que vinha anunciar todos os dias a promessa da flor, mas também a denúncia do que se resta quando ela vai embora. aquela coisa frágil, meio árida, aparentemente sem vida.
o processo orquídeo do luto.
a escrita, a tinta, a página, escrever e regar, ver no graveto a promessa da flor.
a espera.
não fossem as sílabas do sábado, colocaria a minha mão no fogo que andré teria morrido no domingo, num domingo igual ao que pisei os pés fora de casa na promessa de consertar algumas coisas.