VIVER ENTRE LÍNGUAS​

quando, com três anos de idade, sua irmã nasce, a escritora argentina adquire uma nova língua. oriunda de uma família de imigrantes, desde muito pequena se vê às voltas com os distintos idiomas ao seu redor: a avó tipicamente inglesa, a mãe que perde o francês e o sotaque, apropriando-se do espanhol e o pai, que transita de acordo com seu interlocutor. com a irmã, brinca de inventar palavras combinando idiomas, numa tentativa de costurar e juntar as pontas soltas, pegando um pouco daqui, um pouco dali.

alguns anos mais tarde, Sylvia Molloy muda-se para os Estados Unidos, onde vive até os seus últimos dias. no vaivém entre um país e outro, os breves retornos à casa anunciam o que parece encoberto pela poeira do tempo: a breve e sutil aparição de velhos hábitos linguageiros. viver no entre línguas coloca a escritora em uma posição limítrofe, onde na passagem de uma para outra, na tentativa de dizer e faltar algo, no mal estar naquilo que a palavra não comporta e que é sempre alheio, o estrangeiro se instala.

aliás, ele, o estrangeiro, é um elemento que permeia a sua obra, lado a lado com o familiar – tal qual o unheimlich freudiano, aquele que é familiar, mas causa horror. num constante entranhar-se e estranhar-se entre as línguas, Sylvia brinca: o que se fala é sempre dito em um outro lugar. sua condição de estrangeira se dá em sua própria língua, nessa em que localiza como sendo a materna, aquela que abala a fundação da casa. 

no primeiro ensaio de sua coletânea intitulada Figurações, define-se enquanto “Eu, a Argentina”. habitar uma língua nos submete às suas regras gramaticais, jogos fonéticos, semânticos e sintáticos. por outro lado, também nos apropriamos e jogamos com os neologismos, ambiguidades e equivocidade, como na auto definição da escritora que nos leva à confusão: eu, [a escritora] argentina? ou eu, [o país] Argentina?

Sylvia insiste na sua língua materna, portanto fala do seu estranhamento a partir do espanhol, situando-o enquanto língua-casa. ele não lhe promove conforto ou sequer familiaridade, mas um ponto de apoio diante do qual pode se relacionar com as palavras que escapolem, que não dão conta:

Sempre escrevemos a partir de uma ausência: a escolha de um idioma automaticamente significa o fantasmamento do outro, mas nunca sua desaparição. Aquele outro idioma em que o escritor não pensa, diz Roa Bastos, pensa-o (Molloy em Viver entre Línguas)

 

ausência, lacuna;

palavras-tropeços;significantes.

a condição de viver entre línguas escancara a estranheza e o mal-estar, mas ele está ali onde há um falante. não seria esse o processo de uma análise? um constante deslizamento entre entranhar-se e estranhar-se com a própria língua? gosto muito de uma passagem de Cleyton Andrade, em Lacan Chinês, quando diz que: “alguém que leve sua análise longe o suficiente poderá produzir um significante novo, sem sentido, mas formulável de um modo singular”. 

trata-se de um esvaziamento de sentido, certo descompasso semântico que visa produzir nada mais que ressonâncias. é um certo saber fazer, um modo de habitar a língua que não nega o estrangeiro, mas brinca com ele, faz uso dele sabendo que essa é a nossa condição.a condição de falantes.

e então Sylvia, ao começar um novo escrito, tem como porta de entrada o outro idioma, aquele com o qual não seguirá, mas que lhe permite abrir o caminho. depois, em um ato de tradução para a sua língua-casa, os significantes parecem saltitar num trânsito entre o estranho e o familiar.

nesse gesto, as pontas ficam soltas, a ressoar.

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